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CONTOS PARTE II

 O toque súbito do telefone trouxe-lhe de volta a consciência como um vidro que se estilhaça. Por alguns segundos ficou imóvel, fitando o aparelho como quem teme um inimigo conhecido. Hesitou em atender, uma apreensão indefinida o impedia, mas a insistência mecânica do som acabou por vencê-lo. Esticou a mão trêmula e ergueu o braço com esforço: — Alô — disse com voz seca, quase inaudível, sentindo cada sílaba arranhar-lhe a garganta. Silêncio. Uma pausa longa e angustiante que o fez apertar os lábios com força. — Quem está falando? — insistiu, agora com mais vigor, dominado por uma irritação repentina. — Sou eu — respondeu uma voz feminina, suave, quase sussurrada, porém estranhamente familiar, como um eco vindo de algum canto remoto e sombrio de sua memória. — Quem? — perguntou com impaciência crescente. — Não se lembra mais de mim? — indagou a voz num tom de leve reprovação. Ele cerrou os olhos com força, sentindo a testa enrugar-se num esforço desesperado por recordar, por ident...

Fragmentos Poéticos II

Te desejei em intelecto, sabor e chistes Sonhos de cor tenaz Delirei teu nome em febre de manhã bem cedo Olhar de querendo ficar

Contos Parte I

A tosse havia voltado, mas não com a mesma força como nas outras noites. Os olhos meio pregados devido à coriza noturna se esforçavam entreabertos tentando distinguir o distorcido vermelho do relógio-alarme que marcava alguma hora da madrugada. O peito ardia sem parar em razão da bronquite crônica que o acompanhava desde a infância. Um gosto amargo de bile vinha à boca e descia garganta abaixo com a saliva ácida. Já havia horas que estava daquele jeito, virando de um lado para o outro, com se em algum momento fosse conseguir dormir profundamente e esquecer daquilo tudo por mais algum tempo. Porém uma espécie de febre ardia lentamente, e mesmo que não estivesse dormindo de fato, permanecia num estado sonâmbulo, delirante, sem ter controle sobre os pensamentos. E os sonhos? Seriam de fato sonhos? Havia um mês que todas as noites sonhava com a mesma coisa. De manhã nunca lembrava de tudo, sempre alguma parte diferente, porém sabia que se tratava do mesmo sonho. Aquele crucifixo, sempre o...

Underground vs. Mainstream

A lendária guerra entre “mainstream” e “underground” tem suas raízes fincadas na cultura pop do mundo ocidental moderno, e tem encontrado solo particularmente fértil na cultura musical contemporânea. Os dois lados antagonistas têm travado uma batalha épica, onde qualquer coisa que um “undergrounder” (termo usado para descrever um suposto adepto de tal vertente) considere comercial, corporativo ou massificado, se torna “mainstream” e onde tudo que um “mainstreamer” (alcunha que designa o sujeito do lado oposto) acredite ser esquisito, extremo ou pesado se torna “underground”. Tomando o termo “underground” como ponto de partida, percebe-se que o mesmo vem envolto em uma série de suposições, as quais se aplicam o contrário ao lado antagonista. A primeira, é que os artistas que habitam e sobrevivem nessa realidade conspicuamente soturna, são a suprema personificação da essência de seus estilos musicais e conseqüentemente o que eles deveriam ser. A segunda é que eles têm amor pela cultur...

Fragmentos poéticos

I Filosofo em arsênico, carbono e anti-matéria Amorteço em dormências de palavra, sentido e ser Cuspo no copo gozo de carência em Dó maior Nervo que pulsa morte e desejo Fome de cor ambígua Ânsia matinal vertida em sonhos exequíveis Úmidos de preguiça, fumaça e som