CONTOS PARTE II

 O toque súbito do telefone trouxe-lhe de volta a consciência como um vidro que se estilhaça. Por alguns segundos ficou imóvel, fitando o aparelho como quem teme um inimigo conhecido. Hesitou em atender, uma apreensão indefinida o impedia, mas a insistência mecânica do som acabou por vencê-lo. Esticou a mão trêmula e ergueu o braço com esforço:

— Alô — disse com voz seca, quase inaudível, sentindo cada sílaba arranhar-lhe a garganta.

Silêncio. Uma pausa longa e angustiante que o fez apertar os lábios com força.

— Quem está falando? — insistiu, agora com mais vigor, dominado por uma irritação repentina.

— Sou eu — respondeu uma voz feminina, suave, quase sussurrada, porém estranhamente familiar, como um eco vindo de algum canto remoto e sombrio de sua memória.

— Quem? — perguntou com impaciência crescente.

— Não se lembra mais de mim? — indagou a voz num tom de leve reprovação.

Ele cerrou os olhos com força, sentindo a testa enrugar-se num esforço desesperado por recordar, por identificar aquela voz que parecia emergir de uma escuridão há muito esquecida.

— Não... não consigo lembrar — admitiu finalmente, com um tom derrotado e envergonhado.

— Talvez seja melhor assim — disse a voz com um suspiro pesado e melancólico. — Ainda assim, preciso vê-lo. Hoje mesmo. À meia-noite, perto da ponte velha.

A linha morreu antes que ele pudesse responder. Permaneceu sentado na beira da cama, o telefone mudo pressionado contra o ouvido, dominado por uma mistura confusa de medo e curiosidade. Aquela voz continuava a ecoar em sua mente, arrastando fragmentos de lembranças indefinidas, pedaços de um passado que talvez preferisse não reencontrar.

O dia se arrastou com uma lentidão torturante. A febre persistente mantinha-o numa espécie de torpor inquieto, agitando-se entre sonhos lúcidos e despertares súbitos. As horas escorriam vagarosas, deixando-o à mercê de seus pensamentos desconexos. A cada minuto que passava, crescia nele uma angústia inquietante, como se sua vida inteira dependesse daquele encontro noturno.

Finalmente, quando a escuridão engoliu completamente a cidade e o silêncio profundo das ruas desertas dominou o ambiente, ele vestiu um casaco desgastado e caminhou lentamente até a ponte velha. O rio, negro e silencioso sob o luar fraco, parecia esconder mistérios insondáveis em suas águas paradas.

A mulher já estava ali, esperando-o, parada na sombra projetada pela antiga estrutura. Ao aproximar-se, notou que ela tremia suavemente, envolta num velho xale escuro.

— Quem é você? — perguntou ele, contendo a respiração, parando a poucos passos dela.

— Quem eu sou já não importa — respondeu com voz trêmula. — Importa apenas que você se lembre.

E então, num gesto lento e hesitante, ela tirou algo do bolso e estendeu para ele. Sob a luz fraca do luar, ele reconheceu imediatamente o objeto: o crucifixo, aquele mesmo crucifixo que tanto o atormentava em seus sonhos. Sentiu uma vertigem profunda, as mãos começaram a tremer descontroladamente.

— Agora você lembra, não é? — sussurrou ela, observando-o com uma expressão profunda e triste.

Ele sentiu-se cair em um abismo de memórias, imagens dolorosas invadindo-lhe a consciência, revelando culpas, arrependimentos e remorsos até então esquecidos. Um grito silencioso se formou em sua garganta, um grito que não encontrava saída, que se perdia no vazio infinito da noite.

Caiu de joelhos, agarrando o crucifixo como a um objeto sagrado e amaldiçoado. Ela tocou-lhe suavemente os ombros e, inclinando-se para ele, murmurou:

— Não se torture mais. Já pagou o suficiente. Apenas aceite a sua paz.

Ele ergueu lentamente os olhos para ela, enxergando pela primeira vez o rosto daquela mulher, reconhecendo nela todas as faces de seu próprio passado, todas as escolhas feitas e todas as vidas que havia tocado e destruído.

E, finalmente, compreendeu que aquela noite, aquela dor e aquele encontro eram apenas um último convite à redenção ou à condenação definitiva de sua alma perturbada.

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