Contos Parte I
A
tosse havia voltado, mas não com a mesma força como nas outras noites. Os olhos
meio pregados devido à coriza noturna se esforçavam entreabertos tentando
distinguir o distorcido vermelho do relógio-alarme que marcava alguma hora da
madrugada. O peito ardia sem parar em razão da bronquite crônica que o
acompanhava desde a infância. Um gosto amargo de bile vinha à boca e descia
garganta abaixo com a saliva ácida. Já havia horas que estava daquele jeito,
virando de um lado para o outro, com se em algum momento fosse conseguir dormir
profundamente e esquecer daquilo tudo por mais algum tempo. Porém uma espécie
de febre ardia lentamente, e mesmo que não estivesse dormindo de fato,
permanecia num estado sonâmbulo, delirante, sem ter controle sobre os
pensamentos. E os sonhos? Seriam de fato sonhos? Havia um
mês que todas as noites sonhava com a mesma coisa. De manhã nunca lembrava de
tudo, sempre alguma parte diferente, porém sabia que se tratava do mesmo sonho.
Aquele crucifixo, sempre o mesmo crucifixo. Na verdade, era a única coisa que
conseguia lembrar. Desta vez perto da cristaleira de mogno preto. Por vezes
tinha a impressão que quando criança já havia tido esse sonho. Mas o crucifixo?
Às vezes sobre o peito apertando e tirando o ar. E de súbito sentia como se uma
presença no quarto o vigiasse. Eram assim todas as noites. Seria isso loucura?
Por mais que tentasse fazer sentido do turbilhão de imagens que afloravam à mente naquela letargia noturna, nunca conseguia. E a fraqueza tomava conta de
si. Acordava todos os dias como se não tivesse dormido um só segundo a noite
inteira. Apesar de não se dar conta do passar das horas, sabia que passavam,
apenas porque entre uma crise de tosse e outra vinha rapidamente à realidade e
fitava o relógio digital de cabeceira. Logo tornava a virar para lado e cobrir
o rosto com parte do lençol. E a tosse aumentava. Aos poucos sentou na cama, tomou um pouco
de água de um copo que já estava ali na mesa de cabeceira havia algumas noites
e então voltou a se encolher e cobrir o rosto com o lençol já úmido de suor.
Por alguns instantes sentia como se pudesse ficar naquela posição para o resto
da vida, como se aqueles devaneios febris de alguma forma o acalentassem.
Subitamente discutia consigo mesmo dentro de sua cabeça, noutro momento
despencava num abismo de figuras e vozes desconectas. De repente, como se
tivesse sido ejetado da cama, deu um salto e ficou em pé. Ficou ali com os
olhos fixados num quadro mal pintado que havia na parede, não prestava atenção
nele de fato, mas por um instante parou para pensar em tudo que poderia
acontecer se saísse daquele quarto. Certa covardia tomou conta de si, então
voltou e sentou na cama, alguns calafrios espalharam brotoejas pelo corpo, e
sem se dar conta já estava novamente entre os lençóis, morno, com a certeza de
que nunca deveria ter saído dali. Sentia o corpo despencar em um abismo sem fim. De repente tomou um
susto, deu um salto e ficou em pé. Viu que o relógio já marcava três horas da
tarde. Sentou mais uma vez na beira da cama e ficou ali olhando para o chão
segurando a cabeça com as mãos e os cotovelos sobre os joelhos. Pensava para
que continuar e levantar se àquela altura nada mais poderia ser feito. E quando
voltava aos lençóis, quase como um adicto que sucumbe ao vício, o telefone tocou...
Comentários
a gente pode até dizer: ei, isso já aconteceu comigo! Adorei a dose de tensão.
bjs
Posso dizer que o inicio deste conto me fez querer ver mais dele.
Rose Pinheiro - escritora
Muito bom p texto Bruno.
Um relato angustiante de uma situação a qual você estava passando naquele momento.